Como na construção de um edifício de cimento e tijolo, o estabelecer primeiro das fundações é essencial ao processo de edificação racional e sólido de um empreendimento filosófico. Assim o meu primeiro esforço é para a colocação dos alicerces (a elaboração e estruturação da base real) da minha filosofia.
Eu acredito que o processo individual de compreensão da realidade deve assentar numa fenomenologia da nossa particular experiência humana, combinada com reflexão e com imaginação. Procurando usar a imaginação no sentido de providenciar uma heurística pessoal que permita preencher lacunas nas nossas ideias e na nossa falta de compreensão de uma forma racional, válida e humilde. Embora claro que esta imaginação não é um argumento sólido ou válido por si só no processo de entendimento da realidade.
Por exemplo, eu acredito que na realidade a diferentes níveis - pessoal, social, macropolítico, universal, etc. - o mesmo tipo de dinâmicas tende a se replicar. Um dos casos em que isto acontece, é na ocorrência de diferentes forças psíquicas, sociais, políticas, espaciais que se contrapõem e se conjugam resultando numa manifestação particular mais ou menos homogénea, a esses níveis, das realidades correspondentes. Isto equivale ao princípio - acima como em baixo - referido no texto da chamada Tábua Esmeralda, com mais de 2000 anos, que faz parte da nossa cultura popular e se tornou num conceito mental meu.
Também procuro fazer uso da conhecida heurística chamada a Navalha de Occam, que sugere que entre duas teorias com iguais resultados, que procuram explicar ou prever os mesmos fenômenos, devemos sempre escolher a teoria mais simples.
Mas nenhuma das duas heurísticas acima mencionadas garante a certeza ou a verdade. São apenas conceitos que ajudam a encontrar formas de ultrapassar obstáculos na dialética interna.
Agora eu penso que se deve estabelecer a atitude filosófica com que pensar. Esta deve procurar ser corajosa, procurando desenvolver uma atitude curiosa, conciliadora e empática, de abertura e respeito, assente na honestidade intelectual própria e na procura do reconhecimento da honestidade do outro. Sem honestidade intelectual não há discussão sincera e construtiva. Não há dialética válida. E, da mesma forma, a honestidade intelectual precede uma visão própria válida sobre a realidade.
Devemos reconhecer que a realidade nos apresenta inúmeros fatores desconhecidos e inúmeras possibilidades de experiência e interpretação, e assim várias perspectivas válidas sobre a mesma realidade. Sendo que podemos advogar e defender as nossas ideias perante as dos outros, e os hostilizar e procurar subjugá-los, mas a nossa vida eventualmente nos apresenta experiências que nos mostram errados ou mais limitados do que gostaríamos, nos condicionando à humilhação e à humildade. Assim é importante trabalhar a abertura mental e o respeito pelo outro, consciente do mistério (da vida) que nos une.
Como afirma o ditado popular:
O imperador romano Marco Aurélio, e filósofo estoico, também aqui nos oferece a sua sabedoria ao dizer que:
Mesmo que aquilo que o outro nos apresenta - ou nós nos apresentamos a nós próprios - seja tão perigoso e provocante que contrarie as nossas ideias mais fundamentais e ponha a nossa concepção da realidade e de nós próprios em crise, devemos admiti-lo. E podemos até ser incapazes de lidar com este processo, mas pelo menos devemos admitir isto. Porque na verdade pode não haver o conforto que desejamos, mas existe a realidade, e na realidade reside a possibilidade de crescimento e de transcendência do problema e do sofrimento associado. Existe a possibilidade de expansão e transformação do nosso entendimento e sensibilidade - a transformação de nós próprios. Existe o caminho para a nossa real maturação.
E até podemos invejar as ideias do outro e querer nos sobrepôr a ele, e também isto devemos admiti-lo, porque é um comportamento natural e novamente nos apresenta, na sua verdade, a possibilidade de crescimento pessoal, mas devemos nos refrear de procurar destruir projetos válidos, e pessoas.
Em síntese, devemos trabalhar a coragem e procurar pensar de forma honesta, inclusiva e respeitosa, e tentar conciliar de forma válida e intuitiva as nossas ideias com as dos outros - as diferentes visões da realidade. E aceitar as diferenças onde existem, e respeitá-las.
De notar que qualquer ideia tida como verdadeira pode a seu tempo se revelar como incompleta ou falsa. A Ciência, por exemplo, está constantemente em reformulação e evolução. Hipóteses são formuladas, são testadas, são provadas ou negadas, e o conhecimento científico é revisto e evolui. Havendo também, na Ciência, o problema da falsidade intelectual. Assim é muito importante ser-se fiel a aquilo em que genuinamente se acredita, mesmo contra o pensamento da época ou a cultura na qual estamos inseridos, por honestidade intelectual para conosco próprios e com os outros.
E com isto, agora, eu devo procurar identificar a base da experiência humana.
Primeiro, o ser humano, como qualquer ser vivo conhecido, nasce num planeta, num determinado espaço físico, limitado, com recursos limitados. Seja alimentação, água, materiais, ferramentas, pares e possíveis parceiros sexuais, numa quantidade finita. E, num mesmo meio, os diferentes seres vivos, e tanto mais para os da mesma espécie, competem pelos mesmos recursos, ainda que com desígnios especificamente diferentes. Vivemos numa realidade de competição. Embora os recursos, alimentação, água e produtos, em geral, não sejam um problema em termos absolutos, ao vivermos numa sociedade afluente, que prima pela abundância, e que, em geral, apenas limita o acesso a esses recursos. Nomeadamente pela aplicação de um sistema económico.
Desde a fecundação do óvulo e até à sua morte, o indivíduo, primeiro como embrião, depois como feto, depois bebé, criança, adolescente, adulto, idoso, ao longo da sua vida, passa por transformações físicas e psicológicas, que não mudam só a sua forma de viver, mas também a sua experiência - que transformam esse ser.
Na infância, o ser humano é essencialmente uma esponja cognitiva, um receptor, com uma lógica intrínseca natural, e conceitos próprios simples, que aprende, é educado, se educa e desenvolve principalmente pela sua experiência e pela sua interpretação dela, guiado normalmente pelos seus educadores, com reduzido sentido crítico e capacidade de autocontrolo, impulsivo. É nascido para uma existência terrena, como os filósofos Karl Jaspers e Martin Heidegger defendiam com os seus diferentes conceitos de Dasein (ser no mundo).
Segundo a investigadora Amrisha Vaish, do departamento de Psicologia da Universidade de Virginia, Estados Unidos da América, de acordo com a sua investigação na área da psicologia infantil, o ser humano não nasce egoísta, como defende Richard Dawkins na sua obra O Gene Egoísta, mas exibe também, desde os primeiros anos, comportamento demarcadamente pró-social, altruísta, que lhe leva a acreditar que o ser humano nasce com potencialidades altruístas e egoístas, que vai desenvolvendo influenciado por fatores sociais, culturais. Assim, na sua opinião, nós não somos somente bons nem maus, mas ambos, e essas inclinações estão conosco deste o princípio.
No íntimo do ser humano há um forte impulso à novidade. Um impulso criativo. Como Schelling defendia. Um impulso que não necessariamente obedece à razão, e aí a possibilidade da criação de ilusões.
Assim como há forte predisposição à busca de prazer e à fuga à dor. Que pode levar, com a procura de novidade, à imaginação de quimeras utópicas.
E - segundo o médico Gabor Matè - desde tenra idade, o ser humano enfrenta intimamente a tensão entre a procura de aceitação social e a sua autenticidade. Que em ambientes muito exigentes e pouco confortáveis podem levar a total falta de autenticidade no comportamento, em favor da procura por ser aceite socialmente.
O ser humano também não sabe exatamente de onde vem de um ponto de vista biológico e antropocêntrico. Se a comunidade científica coalesceu as suas teorias sobre a evolução humana à volta da ideia da evolução das espécies de Charles Darwin, e há registos esparsos de alguns seres vivos extintos que se creem antepassados do ser humano moderno - fósseis, pinturas, utensílios -, muitas dúvidas persistem e teorias há sobre aquilo que desconhecemos e a forma como tudo se conjugou no passado histórico da Humanidade.
Desta forma a famosa expressão de Jean Paul Sartre, de que a "a existência precede a essência" corresponde à verdade de uma forma empírica, já que o ser antes de se poder conhecer e compreender é forçado a agir, a ser. E é pela sua ação e pela sua experiência, em um mundo desconhecido, que amadurece a sua perspectiva sobre a realidade e, por extensão, sobre si próprio. E esta perspectiva pode levar o indivíduo em direções muito diferentes, ainda que confusas e até perturbadoras, pelo menos em algumas alturas, no processo de se criar a si próprio como indivíduo.
E assim o indivíduo apresentando-se num mundo estranho, limitado, e experienciando os seus próprios impulsos e comportamentos, cria as suas próprias interpretações e ideias, e forma de ser, com base no que existe e nas pressões que sofre. E isto inclui, como num computador, o casamento de uma componente material particular (o corpo como o hardware) e de uma componente abstrata particular (a mente como software), que lhe permite agir de forma consequente no mundo físico que se encontra a habitar. Há toda uma estrutura ordenada e funcional que lhe permite ser no mundo. E que mesmo que apresente as suas diferenças particulares (e.g. visão normal versus visão miópica), apresenta uma paridade nos processos que permite a interação com sucesso e o estabelecimento de relações com os outros seres vivos que reconhece e pelos quais é reconhecido.
E esta estrutura física e abstrata permite a experiência do mundo, o raciocínio, a ação e a aprendizagem que transformam o indivíduo, e que começam algures na vida intrauterina fetal, com a tomada de consciência.
E como Jean Paul Sartre defendia, o ser humano vive caminhando para a morte. A sua experiência é influenciada pela sua finitude e proximidade - pelo menos mental - à sua morte, desde que adquire entendimento sobre o tema.
E os seres humanos são seres sociais, que normalmente se associam entre si e se organizam em sociedades, mais ou menos numerosas e desenvolvidas. E de acordo com as regras criadas (normas e leis) destas sociedades - até as subentendidas - estes indivíduos interagem, se influenciam e se organizam, levando ao surgimento de formas de pensar mais ou menos realizadas e relativas a esses agrupamentos, ideologias, que refletem a especificidade desses grupos dentro das próprias sociedades e as próprias sociedades. E as comunidades, por sua vez, também interagem, se influenciam mutuamente e se podem organizar em estruturas maiores (distritos, países, organizações de países, etc.).
Assim o ser humano não se limita ao seu corpo e mente, como o filósofo Baruch Espinoza considerava, e é comum pensar, mas a verdadeira dimensão do ser humano é a total extensão da sua vida. É o seu corpo, a sua mente, a sua inteligência, a sua sensibilidade, o seu comportamento, e o seu trabalho, mas também as relações que estabelece e até inclui o próprio espaço que ocupa - enquanto e como o ocupa - pela influência que exerce sobre ele e pela forma como o integra, assim como incluí também os produtos da sua existência, e até é determinado em parte, o ser humano, pelas circunstâncias da sua vida (o meio ambiente, a cultura, as suas experiências). A verdadeira extensão do ser humano é a total extensão da sua vida, como ela é, que se intersecta com a existência dos outros. Um ser humano é, em si, um fenómeno natural.
E o foco da atenção do ser humano se divide entre si e o seu meio, e quando se foca no seu meio os seus limites naturais parecem-lhe se esbater e ele perceptualmente tende a se fundir com o objeto da sua atenção.
Como o filósofo Edmund Husserl afirmava, no processo do entendimento, nós observamos o objeto (da nossa atenção) e recriamo-lo no nosso pensamento para nós, definido de acordo com a nossa subjetividade, com um significado para nós. Não é uma representação objetiva do objeto. E este processo é autorreferencial, pois é relativo a nós próprios, como conhecedores.
Mas ao contrário do que pensavam os existencialistas Camus e Sartre, nós criamos significado nas nossas vidas, sentido, mas não todo, pois os eventos em si, da nossa vida, já contém em si algum significado intrínseco. Como por exemplo, a morte. Independentemente de como a perspetivamos é o processo que conduz ao fim da nossa vida física.
Esta particular forma de viver torna válida uma infinitude de diferentes perspectivas sobre a realidade.
Sendo importante também salientar que, com a evolução da ciência e da tecnologia, foi criado novo conhecimento que pode informar quer antigas concepções da realidade e do ser humano quer oferecer novas realidades a considerar. Immanuel Kant acreditava na existência de objetos intangíveis à sensibilidade humana, "as coisas como são nelas próprias" (chamadas de númenos), a realidade absoluta, e estudos científicos recentes sobre o campo quântico apontam à existência de uma dimensão física para lá da quântica, que alguns chamam de meta-dimensão.
Também nós devemos assumir que fazemos parte de uma realidade exterior em constante transformação e perene. Não devemos orgulhosamente nos excluir tolamente dos sistemas de que fazemos parte, como das cadeias alimentares e ecossistemas, numa manifestação de excepcionalismo não merecido e ilusório.
E devemos aceitar que a vida não humana tem e demonstra a consciência necessária para viver com sucesso nos seus nichos ecológicos, incluindo a capacidade de sentir. E com isto não devemos menosprezar, desprezar ou maltratar a vida não humana. Ou a vida humana.
Como o neurocientista Anil Seth afirma:
A consciência é uma estrutura abstrata fundamental ao ser vivo, com funções de interpretação e predição do meio envolvente, gestão da memória, e discussão e decisão do comportamento. Quase como um computador em operação.
De notar que para a consciência existir, nos moldes em que a identificamos, o corpo e o cérebro são fundamentais. Experimentalmente, quando o cérebro está intoxicado, com drogas (incluindo o álcool), ocorrem os chamados apagões, havendo uma memória desses eventos tão mais limitada quanto maior a intoxicação química. O mesmo é corroborado na ausência de atividade cerebral durante a morte, em pessoas cujo cérebro está de alguma forma inutilizado, como reportado em pessoas que tiveram a experiência de estarem clinicamente mortas e sobreviveram. O corpo assume-se essencial à experiência da consciência como a identificamos.
O próprio biólogo Charles Darwin, que criou a teoria da evolução das espécies por seleção natural, defendia que a diferença entre as espécies de seres vivos - em anatomia, fisiologia, comportamento, emoções - são uma questão de grau e não de tipo. Darwin via todas as espécies de seres vivos como relacionadas biologicamente.
O ser humano é, apesar das suas capacidades aparentemente únicas, biologicamente um animal.
E com isto o debate do que é natural e não é natural no comportamento humano não tem sentido, assentando na presunção sobre o excepcionalismo humano.
Tudo o que é possível de existir é necessariamente natural, isto é relativo à natureza. Natureza esta humana, biológica, etc., dependendo do tema em discussão.
Como o pensador Yuval Noah Harari afirmou:
Mas isto não quer dizer que comportamentos, pela sua especificidade indesejável, não possam ser sancionados ou proibidos. Leis e normas também são, da mesma forma, parte da natureza humana. Simplesmente que a questão do que é ou não natural não tem lugar na discussão ética e moral.
E como o astrónomo Carl Sagan defendia, não existe só uma natureza humana. A humanidade e a sua natureza é moldável e flexível, tendo sido influenciada e mudada de forma visível ao longo dos tempos. A escravatura, que foi uma prática comum durante milhares de anos, foi maioritariamente erradicada. A emancipação das mulheres, conferindo-lhes poder político e económico, tradicionalmente lhes negado.
É, por último, também fundamental reconhecer, para uma análise completa do ser humano, e mesmo da realidade, que a nossa percepção não se reduz ao trabalho sobre os sentidos sobre o mundo físico. O ser humano experimenta sensações, sobre o mundo físico, mas também sobre o abstrato, e tem uma dimensão emocional que interage com o pensamento, e o estimula. E estas, ainda que menos tangíveis, não devem ser descartadas no processo de entendimento.
Fontes:Como na construção de um edifício de cimento e tijolo, o estabelecer primeiro das fundações é essencial ao processo de edificação racional e sólido de um empreendimento filosófico. Assim o meu primeiro esforço é para a colocação dos alicerces (a elaboração e estruturação da base real) da minha filosofia.
Eu acredito que o processo individual de compreensão da realidade deve assentar numa fenomenologia da nossa particular experiência humana, combinada com reflexão e com imaginação. Procurando usar a imaginação no sentido de providenciar uma heurística pessoal que permita preencher lacunas nas nossas ideias e na nossa falta de compreensão de uma forma racional, válida e humilde. Embora claro que esta imaginação não é um argumento sólido ou válido por si só no processo de entendimento da realidade.
Por exemplo, eu acredito que na realidade a diferentes níveis - pessoal, social, macropolítico, universal, etc. - o mesmo tipo de dinâmicas tende a se replicar. Um dos casos em que isto acontece, é na ocorrência de diferentes forças psíquicas, sociais, políticas, espaciais que se contrapõem e se conjugam resultando numa manifestação particular mais ou menos homogénea, a esses níveis, das realidades correspondentes. Isto equivale ao princípio - acima como em baixo - referido no texto da chamada Tábua Esmeralda, com mais de 2000 anos, que faz parte da nossa cultura popular e se tornou num conceito mental meu.
Também procuro fazer uso da conhecida heurística chamada a Navalha de Occam, que sugere que entre duas teorias com iguais resultados, que procuram explicar ou prever os mesmos fenômenos, devemos sempre escolher a teoria mais simples.
Mas nenhuma das duas heurísticas acima mencionadas garante a certeza ou a verdade. São apenas conceitos que ajudam a encontrar formas de ultrapassar obstáculos na dialética interna.
Agora eu penso que se deve estabelecer a atitude filosófica com que pensar. Esta deve procurar ser corajosa, procurando desenvolver uma atitude curiosa, conciliadora e empática, de abertura e respeito, assente na honestidade intelectual própria e na procura do reconhecimento da honestidade do outro. Sem honestidade intelectual não há discussão sincera e construtiva. Não há dialética válida. E, da mesma forma, a honestidade intelectual precede uma visão própria válida sobre a realidade.
Devemos reconhecer que a realidade nos apresenta inúmeros fatores desconhecidos e inúmeras possibilidades de experiência e interpretação, e assim várias perspectivas válidas sobre a mesma realidade. Sendo que podemos advogar e defender as nossas ideias perante as dos outros, e os hostilizar e procurar subjugá-los, mas a nossa vida eventualmente nos apresenta experiências que nos mostram errados ou mais limitados do que gostaríamos, nos condicionando à humilhação e à humildade. Assim é importante trabalhar a abertura mental e o respeito pelo outro, consciente do mistério (da vida) que nos une.
Como afirma o ditado popular:
O imperador romano Marco Aurélio, e filósofo estoico, também aqui nos oferece a sua sabedoria ao dizer que:
Mesmo que aquilo que o outro nos apresenta - ou nós nos apresentamos a nós próprios - seja tão perigoso e provocante que contrarie as nossas ideias mais fundamentais e ponha a nossa concepção da realidade e de nós próprios em crise, devemos admiti-lo. E podemos até ser incapazes de lidar com este processo, mas pelo menos devemos admitir isto. Porque na verdade pode não haver o conforto que desejamos, mas existe a realidade, e na realidade reside a possibilidade de crescimento e de transcendência do problema e do sofrimento associado. Existe a possibilidade de expansão e transformação do nosso entendimento e sensibilidade - a transformação de nós próprios. Existe o caminho para a nossa real maturação.
E até podemos invejar as ideias do outro e querer nos sobrepôr a ele, e também isto devemos admiti-lo, porque é um comportamento natural e novamente nos apresenta, na sua verdade, a possibilidade de crescimento pessoal, mas devemos nos refrear de procurar destruir projetos válidos, e pessoas.
Em síntese, devemos trabalhar a coragem e procurar pensar de forma honesta, inclusiva e respeitosa, e tentar conciliar de forma válida e intuitiva as nossas ideias com as dos outros - as diferentes visões da realidade. E aceitar as diferenças onde existem, e respeitá-las.
De notar que qualquer ideia tida como verdadeira pode a seu tempo se revelar como incompleta ou falsa. A Ciência, por exemplo, está constantemente em reformulação e evolução. Hipóteses são formuladas, são testadas, são provadas ou negadas, e o conhecimento científico é revisto e evolui. Havendo também, na Ciência, o problema da falsidade intelectual. Assim é muito importante ser-se fiel a aquilo em que genuinamente se acredita, mesmo contra o pensamento da época ou a cultura na qual estamos inseridos, por honestidade intelectual para conosco próprios e com os outros.
E com isto, agora, eu devo procurar identificar a base da experiência humana.
Primeiro, o ser humano, como qualquer ser vivo conhecido, nasce num planeta, num determinado espaço físico, limitado, com recursos limitados. Seja alimentação, água, materiais, ferramentas, pares e possíveis parceiros sexuais, numa quantidade finita. E, num mesmo meio, os diferentes seres vivos, e tanto mais para os da mesma espécie, competem pelos mesmos recursos, ainda que com desígnios especificamente diferentes. Vivemos numa realidade de competição. Embora os recursos, alimentação, água e produtos, em geral, não sejam um problema em termos absolutos, ao vivermos numa sociedade afluente, que prima pela abundância, e que, em geral, apenas limita o acesso a esses recursos. Nomeadamente pela aplicação de um sistema económico.
Desde a fecundação do óvulo e até à sua morte, o indivíduo, primeiro como embrião, depois como feto, depois bebé, criança, adolescente, adulto, idoso, ao longo da sua vida, passa por transformações físicas e psicológicas, que não mudam só a sua forma de viver, mas também a sua experiência - que transformam esse ser.
Na infância, o ser humano é essencialmente uma esponja cognitiva, um receptor, com uma lógica intrínseca natural, e conceitos próprios simples, que aprende, é educado, se educa e desenvolve principalmente pela sua experiência e pela sua interpretação dela, guiado normalmente pelos seus educadores, com reduzido sentido crítico e capacidade de autocontrolo, impulsivo. É nascido para uma existência terrena, como os filósofos Karl Jaspers e Martin Heidegger defendiam com os seus diferentes conceitos de Dasein (ser no mundo).
Segundo a investigadora Amrisha Vaish, do departamento de Psicologia da Universidade de Virginia, Estados Unidos da América, de acordo com a sua investigação na área da psicologia infantil, o ser humano não nasce egoísta, como defende Richard Dawkins na sua obra O Gene Egoísta, mas exibe também, desde os primeiros anos, comportamento demarcadamente pró-social, altruísta, que lhe leva a acreditar que o ser humano nasce com potencialidades altruístas e egoístas, que vai desenvolvendo influenciado por fatores sociais, culturais. Assim, na sua opinião, nós não somos somente bons nem maus, mas ambos, e essas inclinações estão conosco deste o princípio.
No íntimo do ser humano há um forte impulso à novidade. Um impulso criativo. Como Schelling defendia. Um impulso que não necessariamente obedece à razão, e aí a possibilidade da criação de ilusões.
Assim como há forte predisposição à busca de prazer e à fuga à dor. Que pode levar, com a procura de novidade, à imaginação de quimeras utópicas.
E - segundo o médico Gabor Matè - desde tenra idade, o ser humano enfrenta intimamente a tensão entre a procura de aceitação social e a sua autenticidade. Que em ambientes muito exigentes e pouco confortáveis podem levar a total falta de autenticidade no comportamento, em favor da procura por ser aceite socialmente.
O ser humano também não sabe exatamente de onde vem de um ponto de vista biológico e antropocêntrico. Se a comunidade científica coalesceu as suas teorias sobre a evolução humana à volta da ideia da evolução das espécies de Charles Darwin, e há registos esparsos de alguns seres vivos extintos que se creem antepassados do ser humano moderno - fósseis, pinturas, utensílios -, muitas dúvidas persistem e teorias há sobre aquilo que desconhecemos e a forma como tudo se conjugou no passado histórico da Humanidade.
Desta forma a famosa expressão de Jean Paul Sartre, de que a "a existência precede a essência" corresponde à verdade de uma forma empírica, já que o ser antes de se poder conhecer e compreender é forçado a agir, a ser. E é pela sua ação e pela sua experiência, em um mundo desconhecido, que amadurece a sua perspectiva sobre a realidade e, por extensão, sobre si próprio. E esta perspectiva pode levar o indivíduo em direções muito diferentes, ainda que confusas e até perturbadoras, pelo menos em algumas alturas, no processo de se criar a si próprio como indivíduo.
E assim o indivíduo apresentando-se num mundo estranho, limitado, e experienciando os seus próprios impulsos e comportamentos, cria as suas próprias interpretações e ideias, e forma de ser, com base no que existe e nas pressões que sofre. E isto inclui, como num computador, o casamento de uma componente material particular (o corpo como o hardware) e de uma componente abstrata particular (a mente como software), que lhe permite agir de forma consequente no mundo físico que se encontra a habitar. Há toda uma estrutura ordenada e funcional que lhe permite ser no mundo. E que mesmo que apresente as suas diferenças particulares (e.g. visão normal versus visão miópica), apresenta uma paridade nos processos que permite a interação com sucesso e o estabelecimento de relações com os outros seres vivos que reconhece e pelos quais é reconhecido.
E esta estrutura física e abstrata permite a experiência do mundo, o raciocínio, a ação e a aprendizagem que transformam o indivíduo, e que começam algures na vida intrauterina fetal, com a tomada de consciência.
E como Jean Paul Sartre defendia, o ser humano vive caminhando para a morte. A sua experiência é influenciada pela sua finitude e proximidade - pelo menos mental - à sua morte, desde que adquire entendimento sobre o tema.
E os seres humanos são seres sociais, que normalmente se associam entre si e se organizam em sociedades, mais ou menos numerosas e desenvolvidas. E de acordo com as regras criadas (normas e leis) destas sociedades - até as subentendidas - estes indivíduos interagem, se influenciam e se organizam, levando ao surgimento de formas de pensar mais ou menos realizadas e relativas a esses agrupamentos, ideologias, que refletem a especificidade desses grupos dentro das próprias sociedades e as próprias sociedades. E as comunidades, por sua vez, também interagem, se influenciam mutuamente e se podem organizar em estruturas maiores (distritos, países, organizações de países, etc.).
Assim o ser humano não se limita ao seu corpo e mente, como o filósofo Baruch Espinoza considerava, e é comum pensar, mas a verdadeira dimensão do ser humano é a total extensão da sua vida. É o seu corpo, a sua mente, a sua inteligência, a sua sensibilidade, o seu comportamento, e o seu trabalho, mas também as relações que estabelece e até inclui o próprio espaço que ocupa - enquanto e como o ocupa - pela influência que exerce sobre ele e pela forma como o integra, assim como incluí também os produtos da sua existência, e até é determinado em parte, o ser humano, pelas circunstâncias da sua vida (o meio ambiente, a cultura, as suas experiências). A verdadeira extensão do ser humano é a total extensão da sua vida, como ela é, que se intersecta com a existência dos outros. Um ser humano é, em si, um fenómeno natural.
E o foco da atenção do ser humano se divide entre si e o seu meio, e quando se foca no seu meio os seus limites naturais parecem-lhe se esbater e ele perceptualmente tende a se fundir com o objeto da sua atenção.
Como o filósofo Edmund Husserl afirmava, no processo do entendimento, nós observamos o objeto (da nossa atenção) e recriamo-lo no nosso pensamento para nós, definido de acordo com a nossa subjetividade, com um significado para nós. Não é uma representação objetiva do objeto. E este processo é autorreferencial, pois é relativo a nós próprios, como conhecedores.
Mas ao contrário do que pensavam os existencialistas Camus e Sartre, nós criamos significado nas nossas vidas, sentido, mas não todo, pois os eventos em si, da nossa vida, já contém em si algum significado intrínseco. Como por exemplo, a morte. Independentemente de como a perspetivamos é o processo que conduz ao fim da nossa vida física.
Esta particular forma de viver torna válida uma infinitude de diferentes perspectivas sobre a realidade.
Sendo importante também salientar que, com a evolução da ciência e da tecnologia, foi criado novo conhecimento que pode informar quer antigas concepções da realidade e do ser humano quer oferecer novas realidades a considerar. Immanuel Kant acreditava na existência de objetos intangíveis à sensibilidade humana, "as coisas como são nelas próprias" (chamadas de númenos), a realidade absoluta, e estudos científicos recentes sobre o campo quântico apontam à existência de uma dimensão física para lá da quântica, que alguns chamam de meta-dimensão.
Também nós devemos assumir que fazemos parte de uma realidade exterior em constante transformação e perene. Não devemos orgulhosamente nos excluir tolamente dos sistemas de que fazemos parte, como das cadeias alimentares e ecossistemas, numa manifestação de excepcionalismo não merecido e ilusório.
E devemos aceitar que a vida não humana tem e demonstra a consciência necessária para viver com sucesso nos seus nichos ecológicos, incluindo a capacidade de sentir. E com isto não devemos menosprezar, desprezar ou maltratar a vida não humana. Ou a vida humana.
Como o neurocientista Anil Seth afirma:
A consciência é uma estrutura abstrata fundamental ao ser vivo, com funções de interpretação e predição do meio envolvente, gestão da memória, e discussão e decisão do comportamento. Quase como um computador em operação.
De notar que para a consciência existir, nos moldes em que a identificamos, o corpo e o cérebro são fundamentais. Experimentalmente, quando o cérebro está intoxicado, com drogas (incluindo o álcool), ocorrem os chamados apagões, havendo uma memória desses eventos tão mais limitada quanto maior a intoxicação química. O mesmo é corroborado na ausência de atividade cerebral durante a morte, em pessoas cujo cérebro está de alguma forma inutilizado, como reportado em pessoas que tiveram a experiência de estarem clinicamente mortas e sobreviveram. O corpo assume-se essencial à experiência da consciência como a identificamos.
O próprio biólogo Charles Darwin, que criou a teoria da evolução das espécies por seleção natural, defendia que a diferença entre as espécies de seres vivos - em anatomia, fisiologia, comportamento, emoções - são uma questão de grau e não de tipo. Darwin via todas as espécies de seres vivos como relacionadas biologicamente.
O ser humano é, apesar das suas capacidades aparentemente únicas, biologicamente um animal.
E com isto o debate do que é natural e não é natural no comportamento humano não tem sentido, assentando na presunção sobre o excepcionalismo humano.
Tudo o que é possível de existir é necessariamente natural, isto é relativo à natureza. Natureza esta humana, biológica, etc., dependendo do tema em discussão.
Como o pensador Yuval Noah Harari afirmou:
Mas isto não quer dizer que comportamentos, pela sua especificidade indesejável, não possam ser sancionados ou proibidos. Leis e normas também são, da mesma forma, parte da natureza humana. Simplesmente que a questão do que é ou não natural não tem lugar na discussão ética e moral.
E como o astrónomo Carl Sagan defendia, não existe só uma natureza humana. A humanidade e a sua natureza é moldável e flexível, tendo sido influenciada e mudada de forma visível ao longo dos tempos. A escravatura, que foi uma prática comum durante milhares de anos, foi maioritariamente erradicada. A emancipação das mulheres, conferindo-lhes poder político e económico, tradicionalmente lhes negado.
É, por último, também fundamental reconhecer, para uma análise completa do ser humano, e mesmo da realidade, que a nossa percepção não se reduz ao trabalho sobre os sentidos sobre o mundo físico. O ser humano experimenta sensações, sobre o mundo físico, mas também sobre o abstrato, e tem uma dimensão emocional que interage com o pensamento, e o estimula. E estas, ainda que menos tangíveis, não devem ser descartadas no processo de entendimento.
Fontes: